Era 31 de dezembro de 1948 e a comunidade de Água Fria, na Zona Norte de Recife, se aprontava para um ritual que há muito não se via, nem ouvia, a não ser em lugares secretos. Naquela noite poderiam outra vez cultuar seus deuses com o consentimento das autoridades.
É claro que começou somente com o povo do terreiro do Sítio de Pai Adão. Os filhos e filhas de santo tocavam e dançavam ainda desconfiados; o batuque era discreto. Olhavam pelas janelas para ver se a polícia não apareceria para impedi-los, mais uma vez. As baianas usavam a saia branca do candomblé por cima de vestidos. Ficaria mais fácil de tirá-las caso os perseguidores chegassem de surpresa. Os que não acreditavam no que ouviam, aos poucos, iam se aproximando do salão do terreiro, onde acontecia um toque para Oxalá.
De repente, um grito ecoa no salão. Era o orixá Ogum, manifestado em França, filha de santo antiga da casa. Os ogãs perderam a timidez; soltaram os braçose o toque se animou; os fiéis passaram a cantar mais alto, os cânticos a Oxalá. E os orixás da casa passaram a "descer". Mãe Joana Batista recebeu sua Iemanjá, e os demais médiuns passaram a entrar em transe e receber seus orixás. Com o passar dos dias, outros terreiros do Recife voltaram a praticar seus rituais de candomblé, livres da perseguição que durou dez anos. O fim do período marcado pelas constantes prisões de babalorixás e filhos de santo, e quebra-quebra da polícia quando encontrava imagens e símbolos africanos nas casas denunciadas, completa hoje sessenta anos. O babalorixá Manoel Papai tinha sete anos; era apenas Manoel do Nascimento, neto legítimo de Pai Adão e filho de mãe Lídia. Ele recorda de "espiar", escondido atrás de cortinas e janelas, os rituais que eram feitos em segredo. Mesmo depois de liberada, a "macumba" não podia contar com a presença de crianças, sob pena de multa para o terreiro que o fizesse. Os chefes dos terreiros, mesmo após a abertura, ainda precisavam pedir alvarás de funcionamento para realizar suas festas.
A história da perseguição sofrida pelos terreiros está em pelo menos dois livros, de autoria de Manoel Papai. O primeiro, Senhora dos Pássaros da Noite, de 1990. O segundo é Xangô do Recife - Tradição e História, que está em fase de conclusão. Para celebrar a data, Manoel Papai idealizou um encontro com quinze babalorixás e ialorixás de terreiros do Recife e Olinda. Assim como aconteceu há 60 anos, eles irão produzir um toque para Oxalá, hoje, no Sítio de Pai Adão. O evento, que começa às 20h, está sendo chamado de pré-reveillon afro. Está aberto ao público, com a condição de que todos usem branco. Quem não quiser romper o ano fora de sua casa, pode ir assistir ao toque para Oxalá e voltar antes da meia-noite. O ponto alto da festa será um jogo de búzios conjunto, para saber qual o orixá que irá reger o ano de 2009. Tal prática costuma ser feita em cada terreiro, isoladamente. Será a primeira vez que todos os babalorixás tentarão chegar a um acordo quanto ao Orixá do ano.
"A repressão que sofremos foi forte, dez anos. Nessa época, algumas casas faziam obrigações escondidas. Mãe Lídia tinha uma casa de palha, em Jatobá. Havia uma casa no Morro da Conceição que também escondia santos", conta Papai. O babalorixá contabiliza inúmeras perdas, materiais e imateriais, da época em que o candomblé foi proibido. "Como nossa memória é oral, os dez anos prejudicaram nossa linguagem, a transmissão dos toques, dos cânticos, a culinária", pontua. O toque desta noite vai resgatar algumas destas informações. O povo de santo vai cantar em iorubá; também será oferecido o osé (arroz de Oxalá). Para o público em geral, haverá comidas típicas, como o xinxim de galinha. "Essa reunião irá fortalecer a religião. Hoje vemos que está tudo mais aberto, antes as pessoas tinham até medo de entrar no Sítio de Pai Adão", conta Manoel Papai.
Fonte: http://www.diariodepernambuco.com.br