A regularização fundiária dos terreiros de candomblé e umbanda existentes em Salvador segue em polêmica. Governo, vereadores da oposição e associações que reúnem comunidade de povos tradicionais, inclusive templos de matriz religiosa africana, como a Associação Cultural de Preservação do Patrimônio (Acbantu), discordam da redação da emenda à Lei Orgânica do Município (nº 01/09) que incluiu outras denominações religiosas como aptas a receber o benefício.
O texto em debate altera o art. 14 da Lei Orgânica, que, no inciso 3º da proposta, diz: “Na hipótese de fração ideal dos terrenos ou bens imóveis construídos e efetivamente utilizados como locais de quaisquer cultos religiosos, a concessão de direito real de uso, considerada como regularização fundiária de interesse social, será outorgada de forma gratuita, dispensada a autorização legislativa e licitação, observando-se em relação às religiões de matrizes africanas, o que dispõe a Lei Municipal 7.216, de 16 de janeiro de 2007, que trata da preservação do patrimônio histórico e cultural de origem africana e afro-brasileira no município de Salvador”.
Para o vereador Gilmar Santiago (PT-BA), esta redação, ao mesmo tempo que inclui outros grupos religiosos, discrimina os de matrizes africanas por exigir que eles se adequem ao que determina uma outra legislação. “Por que as demais religiões pegaram carona nesse projeto? E por que só os terreiros de candomblé precisam se adequar a uma determinada lei e os outros não? Isso, para mim, é tendencioso e discriminatório”, acusa.
Mapeamento – A tentativa de regularizar os terreiros de candomblé e umbanda, que sofrem com a especulação imobiliária diminuindo seus espaços, ganhou novo fôlego com a realização do levantamento denominado Mapeamento dos Terreiros.
As conclusões do estudo, coordenado pelo doutor em antropologia Jocélio Teles, foram divulgadas em maio de 2007, quando Santiago era o titular da Secretaria Municipal da Reparação (Semur). O estudo catalogou 1.165 terreiros na cidade, além de ter reunido informações como o perfil dos sacerdotes e a situação das propriedades.
As questões relacionadas à regularização fundiária ganharam contornos de urgência em fevereiro do ano passado. Prepostos da Superintendência de Controle e Ordenamento do Uso do Solo do Município (Sucom) demoliram, parcialmente, o terreiro Oyá Unipó Neto, localizado no Imbuí, o que abriu uma crise no governo municipal, inclusive com a exoneração da então superintendente da Sucom, Kátia Carmelo.
No último dia 29, por meio da mensagem nº 9, o Executivo enviou a proposta de emenda à Câmara, esperada desde o ano passado, mas já com a inclusão do texto que estende o benefício a todas as religiões.
A atual titular da Semur, a advogada Maria Alice Pereira, não concorda com a interpretação do vereador. “Esta proposta de regularização fundiária já rendeu muitos capítulos. Ela deve ser examinada sem emoção, mas à luz do direito”, diz Maria Alice.
De acordo com ela, a Lei 7.216/2007 surgiu com o objetivo de garantir a preservação do patrimônio histórico e cultural de origem africana e afro-brasileira em Salvador, categoria na qual os terreiros estão inseridos. “A lei foi publicada na época em que o hoje vereador Gilmar Santiago era secretário da Reparação”, aponta Maria Alice.
Tombamento – Em seu art. 2º e respectivos incisos, a lei considera patrimônio histórico e cultural do município as manifestações que tenham a ver com a identidade, ação, modo de vida ou memória dos povos africanos e afro-brasileiros, inclusive nas formas de expressão e celebração. “Um ato litúrgico é uma celebração”, aponta ela.
A lei também cria mecanismos legais e mais flexíveis para o tombamento e registro de bens móveis e imóveis de origem africana ou afro-brasileira, na avaliação da secretária. “O inciso 3º do Art. 14 da Proposta de Emenda à Lei Orgânica realmente prevê benefícios para todas as religiões, mas, diante das peculiaridades das religiões afro-brasileiras, prevê para elas os benefícios que estão assegurados na Lei 7.216”, diz Maria Alice.
De acordo com ela, com estes benefícios, será possível comprovar a importância histórico-cultural e o tombamento por meio de fotografias, cartas, certidões e outros documentos. “A Lei de Patrimônio amplia direitos em virtude das peculiaridades dos terreiros, então, para mim, salvo melhor juízo, há equívoco do vereador”, diz.
Além disso, de acordo com a secretária, o projeto reconhece o direito dos terreiros, mas também o caráter laico do Estado. “O projeto prevê determinados benefícios para todas as religiões. O Estado é laico, mas tem o dever constitucional de garantir o pleno exercício dos direitos culturais, apoiando e incentivando a valorização das manifestações culturais”, concluiu.
Recuo – Presidente da Associação Cultural de Preservação do Patrimônio Bantu (Acbantu), Tata Raimundo Konmmannanjy considera que a redação do texto do jeito como se encontra é uma quebra do compromisso do prefeito João Henrique com o povo-de-santo.
Segundo Konmmannanjy, o prefeito recuou do que havia prometido diante da polêmica envolvendo a demolição do terreiro Oyá Unipó Neto. “Para o nosso povo, palavra tem valor, e por isso a gente não precisa de nada escrito. Mas no mundo de cá, é diferente. Então se ele deu a palavra, a meu ver, se comprometeu e agora recuou. Isto é intolerância ao candomblé”, diz.
Para a vereadora Olívia Santana, a redação do texto é um desvirtuamento. “Foi o candomblé que até 1976 tinha de pedir autorização do Estado, via Delegacia de Jogos e Costumes, para realizar seus ritos. As outras religiões, não. Os terreiros vão continuar lutando para garantir seus terrenos, mesmo em áreas afastadas dos centros, enquanto outras denominações religiosas, já em áreas consideradas nobres, vão garantir esta propriedade sem nenhum esforço”, completa.
Fonte: http://www.atarde.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário