Há três décadas, João José Reis, 56 anos, aguça suas lentes de pesquisador para encontrar, na frieza dos arquivos, relatos de quem se armou de força e engenho para atravessar a escravidão, seja por meio da revolta, da alforria ou de valores e práticas sócio-culturais. Em Domingos Sodré, um sacerdote baiano, que acaba de sair pela Companhia das Letras, o historiador demonstra mais uma vez sua habilidade para cativar tanto acadêmicos quanto leitores, já revelada em Rebelião escrava no Brasil A história do levante dos malês (1986) e A morte é uma festa (1991), entre outras obras. Ele alia rigor de pesquisa, agudeza da interpretação e fôlego narrativo para contar como um ex-escravo se firma na sociedade baiana do século XIX. A biografia de Sodré serve de fio condutor para traçar o painel de uma época e, particularmente, reconstituir parte dos primeiros anos do candomblé. Nascido e criado na Ribeira, em Salvador, Reis diz que se tornou historiador "graças a uma sucessão de encontros e escolhas felizes". A inspiração para estudar história veio de um professor de pré-vestibular, Alberto Goulart Paes Filho, que, por sua vez, o apresentou a Katia de Queirós Mattoso, "primeira mestra em transformar pesquisa em texto". Com sua ajuda, conseguiu uma bolsa para estudar história na Ucsal, curso que realizou em paralelo ao de ciências sociais na Ufba. Pela frente, encontrou outros mestres, como Johannes Augel e Stuart Schwartz - com auxílio do último, defendeu o doutorado na Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos. Reis é hoje professor do Departamento de História da Ufba e, entre outras atividades, integra a linha de pesquisa Escravidão e invenção da liberdade, que há mais de uma década reúne regularmente pesquisadores da casa e de diversas outras instituições. Desse grupo, já saíram dezenas de dissertações de mestrado, teses de doutorado, livros, artigos e a produção da revista AfroÁsia, do Centro de Estudos Afro-Orientais Ceao. Leia abaixo os principais trechos da entrevista de Reis concedida por e-mail à jornalista Josélia Aguiar, para o Cultural.
A TARDENo prefácio, o senhor conta um pouco como ′descobriu′ Domingos Sodré ao pesquisar em arquivos. Em que instante se deu conta de que ele seria o condutor dessa parte da história social do candomblé?
João José Reis | Acontece comigo. Meus livros sobre a Revolta dos Malês e a Revolta da Cemiterada nasceram de assuntos maiores. Domingos era para ser personagem de um artigo, que escrevi e publiquei, mas comecei a encontrar novas fontes que me permitiram ampliar sua biografia e a fazer conexões com biografias de outros personagens. E o artigo evoluiu para o livro. A história do candomblé não é assunto novo pra mim. Desde 1988, publico artigos sobre o tema. Estou para retomar, em parceria com Jocélio Telles dos Santos, meu colega na Ufba, o projeto de uma história social do candomblé ao longo do século XIX, para a qual já escrevemos alguns capítulos.
AT | De ex-escravo, Domingos Sodré se torna feiticeiro e figura de certa influência. O que sua trajetória de vida nos revela dessa sociedade?
JJR Revela que não era uma sociedade absolutamente fechada à mobilidade social, o que não é bem uma novidade para os iniciados. Mas era uma sociedade escravista em que a maioria dos africanos desembarcados como escravos morria como escravos. E para aqueles que conseguiam alforria, a mobilidade não era ilimitada. Havia barreiras raciais e étnicas intransponíveis, e eu as discuto no livro. O africano liberto, por exemplo, não podia participar em nenhum nível do jogo político oficial, não podia votar nem ser eleito, mesmo se fosse rico, como alguns poucos eram. Havia, inclusive, barreiras legais contra a ascensão econômica do africano. No livro, eu mostro, através da trajetória pessoal de Domingos e outros libertos, como os africanos negociaram a superação de algumas dessas barreiras, formando alianças sociais muitas vezes com a ajuda de suas habilidades rituais.
AT | Quais foram as maiores dificuldades para recontar a história de Domingos Sodré? Em vários trechos, o senhor ′imagina′ aquilo que não poderia ser respondido pela inexistência de documentação. De certo modo, confirma o que nos diz Carlo Ginzburg, para quem é possível fazer história com imaginação - e não, obviamente, com invenção?
JJR É isso mesmo. A dificuldade é que a gente não encontra dados para tudo na vida do personagem. A imaginação do historiador entra, não para substituir o dado, mas para propor possibilidades. A imaginação é também mobilizada para interpretar os dados que temos. Num e noutro caso, ajuda o conhecimento acumulado sobre o tema, a época, o lugar, enfim, sobre o contexto histórico objeto do exercício imaginativo.
AT | Uma obra como esta exige domínio de certas técnicas narrativas. Como nasce o escritor dentro do historiador?
JJR Em primeiro lugar, eu não escrevo apenas para especialistas, nem neste nem em livros anteriores. Os aspectos puramente conceituais raramente aparecem em meu trabalho como discussão teórica pura, o que guardo para o debate acadêmico com colegas e alunos. Não quer dizer que, quando escrevo, evito o debate de idéias, o bate-bola com os autores da área e coisas do gênero. Este livro não é apenas descritivo, é interpretativo, conceitual, mas os conceitos fazem parte da própria narrativa. Deixo que o leitor os descubra se quiser, se não lhe bastar desfrutar de uma boa história. O gênero biográfico, por outro lado, ajuda a engajar o leitor porque se aproxima do romance, o que é mais difícil ao se escrever história econômica da escravidão, por exemplo, que exige gráficos e tabelas. A prosa ficcional é feita de personagens com nome, endereço, embates, atitudes, decisões, desafios, perdas e ganhos, amores e dissabores. Domingos Sodré tem tudo isso, e ainda por cima ele existiu.
AT | Por que, na Bahia, o candomblé alcançou maior prestígio que nas demais regiões do País? Foi apenas por uma questão de maior contingente demográfico negro?
JJR O prestígio do candomblé, no sentido de aceitação social e proteção legal, é fenômeno relativamente recente. Há 30 anos, os terreiros tinham que se registrar na Delegacia de Jogos e Costumes. A partir de então, o candomblé virou moeda forte no jogo político-eleitoral, na economia regional (o turismo), na representação identitária (os movimentos negros) - e seu prestígio vem aumentando. Mas foi também ao longo desse período que a religião viu crescer um adversário poderoso nas igrejas evangélicas. Incidentes de intolerância religiosa, de violência verbal e física contra o povo-de-santo são veiculados toda hora na imprensa. Mesmo os poderes políticos ainda não se acostumaram com a idéia de que candomblé é religião com o mesmo estatuto das demais. A Prefeitura há alguns meses demoliu um templo de candomblé e vem assediando o venerável terreiro da Casa Branca para pagar IPTU, quando templo religioso, pelo que sei, é isento deste imposto. Então não diria que a batalha da aceitação e, portanto, o prestígio do candomblé na Bahia sejam ponto pacífico, ainda.
AT | Quais foram os caminhos encontrados pelos negros para a ′invenção da liberdade′ - título, aliás, de um livro organizado pelo senhor em 1988? Algum predominou? Algum foi mais bem-
-sucedido?
JJR A invenção da liberdade começava no interior da escravidão mesma, na conquista de espaços às vezes muito pequenos de respiração, até coisas maiores como manutenção da família unida, a celebração de crenças ancestrais, a liberdade dos batuques e a conquista da alforria. A invenção da liberdade estava também em atitudes mais abertamente rebeldes, a fuga, a formação de quilombos, as revoltas, o protesto abolicionista. A invenção da liberdade se projeta para além da abolição, para as estratégias através das quais indivíduos e coletividades reconstruíram suas vidas para enfrentar novos obstáculos à sua plena cidadania. E como o passado insiste em se renovar, a invenção da liberdade continua nos dias de hoje na mobilização por ações afirmativas, na defesa das cotas para ingresso nas universidades, na disputa político-eleitoral e na negociação cotidiana com patrões, patroas, policiais, fiscais, professores e outros poderes disseminados pela sociedade e o Estado.
Fonte: a Tarde On Line
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