Na parede, as senhoras dos orixás, símbolos do matriarcado que pisou no Palácio do Catete, e nas ruas e roças da "Cidade da Bahia" - como Salvador é chamada pelos que ainda reservam nostálgico lirismo -, para afirmar o Candomblé como religião de origem africana, não uma seita submissa aos símbolos da Igreja Católica.Olhos negros, pele mourisca, a mulher contempla os retratos de mãe Aninha - fundadora do Opô Afonjá, em 1910 - a mãe Stella, última na linha sucessória, que sai do peji (altar) de Xangô e atravessa a sala de espera.
- Como eu me dirijo a ela? - pergunta, docilmente, a visitante. - Quero apenas agradecer.
Stella de Oxóssi já está em outra sala, numa cadeira de balanço. Ouve um filho-de-santo contar as últimas histórias dos homens e da cidade, pedir conselhos, oferecer cuidados. Longo papo.
Por instantes, ele sai da casa - "ainda não acabei" - e a indecisa baiana pede licença, toma a mão de Stella e pede a bênção. Sem nome, registra somente o agradecimento.
O homem de branco volta a assumir sua cadeira e presenteia a ialorixá com uma cesta de manga-rosa. "O que a senhora quiser, minha mãe, é só pedir". Sábado de manhã.
A cena pode se repetir em outros sábados e manhãs, nos domínios do Opô Afonjá. Brasileiros anônimos e famosos - entre estes, Jorge Amado, Dorival Caymmi, Carybé e Gilberto Gil -, encontraram em Mãe Stella a clarividência de conselheira. Há 31 anos à frente do terreiro, ela agora lança o livro de "Provérbios" (Òwe), alguns em iorubá, outros em português castiço.Com doses de razão, a propaganda do livreto informa: "O que todo brasileiro queria: ter sempre mãe Stella por perto".
Filha de Oxóssi, Stella é descrita por Jorge Amado, em Bahia de Todos os Santos, como "prudente e forte, flexível e intransigente, capaz e firme, sentada no trono que já lhe era devido por destino e por escolha."
Oxóssi, segue Jorge, "Deus da caça, das úmidas florestas, com o ofá (arco-e-flecha) abate os javalis, as feras, é o invencível caçador".
Stella, prudência de Oxóssi, põe os óculos antes de iniciar a entrevista.
Nascida em 1925, escolhida ialorixá em 1976, sua liderança religiosa marcou a história do Candomblé. Em 1983, na II Conferência Mundial da Tradição dos Orixás e Cultura, em Salvador, Stella articulou a elaboração de uma carta que rejeitava os cultos sincréticos, a submissão a outras religiões.
"Não podemos pensar nem deixar que nos pensem como folclore, seita, animismo, religião primitiva", dizia o documento, também assinado por Mãe Menininha do Gantois e Olga de Alaketo.
- Candomblé não é brincadeira.
Consolidada a liberdade de culto, os terreiros da Região Metropolitana de Salvador - cerca de 1.162, segundo recente mapeamento (http://www.terreiros.ceao.ufba.br/) - sofrem com as agressões das igrejas neopentecostais e com a especulação imobiliária. Mãe Stella se sentiu obrigada a murar o Opô Afonjá e a aceitar o tombamento do terreiro.
- Fiz uma pressãozinha pra que isso aqui não fosse tombado, mas, depois, na situação em que nós estamos, da falta de respeito, da especulação imobiliária... Chefes de Estado que mentem pra população, dizendo que estão adotando uma religião que é contra tudo, entendeu?
Aos berros dos pastores da Igreja Universal do Reino de Deus e da Assembléia de Deus, o povo-de-santo responde com paciência e um comitê em defesa da tolerância religiosa. Mas a presença de bancadas evangélicas na Assembléia Legistativa e na Câmara de Vereadores fortalece, politicamente, o discurso fundamentalista.
O prefeito de Salvador, João Henrique Carneiro, é evangélico praticante. Mínima simpatia pelo Candomblé. O primeiro colocado nas pesquisas eleitorais para a sucessão municipal, o apresentador da TV Record Raimundo Varela, guarda vínculos estreitos com os bispos da Universal.
A voz das ruas se vinga. Frase de uma baiana de acarajé captada pela jornalista Cleidiana Ramos, versada nos mistérios dos terreiros baianos, na porta da Igreja do Rosário dos Pretos: "Dizem que ele é evangélico, mas João Henrique tem o pé no azeite. E ali é de Xangô".
Segundo Mãe Stella, muitos políticos "têm receio de dizer que estão ajudando." Ela descrê na vitória dos neopentecostais.
- A gente tem que se segurar, ciente de que eles não vão ter essa vitória extrema como querem, porque nós adoramos o sagrado, o orixá, e estamos entregue a eles, nossa vida.
Senhora de poucas palavras em entrevistas, ela conversa amigavelmente, sem pressa, com Terra Magazine. Está em dia de fartos, comedidos verbos, na Casa de Xangô. Comenta a publicação do livro, a história do Opô Afonjá e não se nega a falar sobre o movimento negro.
- Cotas pra mim... O negro tem obrigação, como todo o ser humano, de ser inteligente, de ir pros livros, fazer pesquisas, dar conta de seu recado direitinho. (...) Esse negócio de passar a mão na cabeça... Não há mais necessidade disso. Cada um de nós tem que ter a condição de escrever a sua própria história.
Vez e hora do caderno de histórias de Mãe Stella, ialorixá dos baianos.
Terra Magazine - A senhora acaba de lançar um livro de provérbios, reunidos ao longo de sua atuação aqui no Ilê Axé Opô Afonjá. De onde nasceu essa idéia?
Mãe Stella - Bem, eu sempre me detive, sempre me prendi a essa questão de provérbios. Desde meus tempos de infância, os mais velhos falavam muito por metáforas. Quando eles queriam dar uma lição de moral, diziam uma metáfora dessas, um provérbio. Então, a gente era obrigado a discernir aquilo pra saber o que é que ele queria dizer. E eu sempre curti isso. Depois fui crescendo e vim pra aqui, no lugar de mãe-de-santo, e daí pra cá eu fiquei fazendo o quê? Colecionando. Todo o provérbio que eu escutava, eu anotava. Tenho um caderninho. Mais de 20 anos anotando esss provérbios. Quando foi outro dia, sentada, pensei: sabe que eu vou fazer um livrinho desse? Porque às vezes uma pessoa me pergunta um conselho, então vou me lembrar de um provérbio desses... Digo aquilo. E você veja que um provérbio, por menos que seja, tem muita...
Sabedoria?
Muita sabedoria. A maioria deles é de domínio público, né? Ninguém sabe quem fez. É de todos nós. Então, não achei nada demais pegar e fazer esse livrinho.
Muitos vêm de seus ancestrais?
Como eu sou descendente africana, os mais velhos também só falavam assim. E tanto que no livrinho eu botei uma parte em iorubá, a outra em português. É como se fosse um pequeno oráculo que você está olhando. Orumilá é o dono do oráculo, da adivinhação. Tudo o que você quer, evoca a ele, com certeza ele lhe dá um insight e você consegue dizer aquilo que você quer com poucas palavras.
E a senhora acaba sendo conselheira de muitas pessoas, na Bahia...
Perfeito. E eu vou ao cinema, a qualquer canto, sempre tenho um conselho... Então, se a pessoa quer um conselhinho, chega aqui e descobre. Com as bênçãos de Orumilá.
Quando a senhora começou a anotar?
Depois que eu estou aqui. Eu sempre gostei de anotar as minhas coisas, chega alguém e diz: ô, mãe-de-santo, você que gosta... E me dizia. Tinha um ogã (título de um sacerdote sem transe), já faleceu até, ele chegava aqui de tarde pra bater papo e cada um ia dizendo um. Fui anotando.
Caymmi gostava desse caderninho?
Ah, sim, ele brincava, aparecia aqui e ficava curtindo também. Ele dizia muitos, porque tem mais ou menos a minha idade. O ogã daqui, (o ator Carlos) Petrovich - grande homem, né? - também era inspiração pra essas coisas.
Isso é inovador para o Candomblé, que é marcado pela cultura oral, não?
É, cultura oral. E eu respeito muito essas coisas de antiguidade, mas se a gente pensar bem, vê o quê? Você vê que o mundo está tomando uma direção diferente, com tecnologia. A outra coisa mais certa, e a gente já sofreu disso: o que você não registra se perde. O vento leva. Não registra, o vento leva, eu repito. Porque uma vez que era oralidade, até nos cânticos nossos, quantas palavras deturpadas tem... Os provérbios que você diz, cada um tem um jeito de escutar. Tem um ditado que diz assim: "caiu açúcar no mel." Quer dizer, açúcar no mel é uma coisa muito doce. Muita gente que não entende e diz: "Caiu a sopa no mel." Entendeu? (risos) Caiu a sopa no mel não tem nada! Até fica ruim... Sopa no mel é coisa ruim. Agora, se caiu açúcar no mel, é um doce por cima do outro. Então, a gente pensa que às vezes uma coisa se perde na sua forma certa por escutar diferente. Como em nossos cânticos em iorubá tradicional. Às vezes a gente canta uma cantiga erradamente porque ouviu errado, vai passando e aquilo vira verdade.
Às vezes a música popular assimila essa linguagem errada.
É, é, com certeza! Deturpam mesmo. Espero que todos gostem, eu mesmo gostei depois de pronto (olha o livro). Foi uma gentileza que um amigo me fez. Era pra fazer só a divulgação, mas ele tomou a bonequinha e fez tudo.
Qual o provérbio que a senhora mais gosta ou mais usa?
Vamos abrir aqui... "Pedra que muito se muda não cria limo". (risos) Você tira daqui e bota lá; é como se você a cada dia fosse uma casa, você não tem uma base, não tem essência. Tem um que diz assim, eu gosto muito, os antigos diziam: "Olho viu, cala a boca". É um ditado em iorubá. Tem outro: Orí eni ní um 'ni j´oba (a cabeça de uma pessoa faz dela um rei). Pra você ver que a cabeça de uma pessoa faz dela um rei - depende de seu desenvolvimento mental, da sua energia, do seu caráter. São caracteres que podem lhe fazer grande ou destruir. Como também dizem: sua cabeça, seu mestre. Se pensar bem, é só a gente procurar o bom caminho que nós chegamos de uma forma boa.
Alguns desses ditados foram ouvidos de Mãe Senhora?
Mãe Senhora dizia muitos. Inúmeros, inúmeros. Por exemplo, quando ela queria que você se orientasse nos pés de um orixá, ela dizia: cuide de sua cabeça. Porque a cabeça também se aborrece. E outros mais, que agora nem lembro.
A senhora cumpre um papel importante no Candomblé porque enfatiza a necessidade de alfabetização, de se educar. Há escolas no Opô Afonjá... Como surgiu isso?
Veja, isso eu não inventei porque eu absorvi. Absorvi de Mãe Aninha, fundadora daqui, no século passado. Ela dizia o quê? Que ela queria ver os filhos e os netos servindo ao orixá, servindo a Xangô, com o anel no dedo. Anel no dedo lembra uma formatura, uma graduação. E eu sempre achei isso muito bonito pra uma senhora daquela, que não era analfabeta como dizem, falava até francês, porque antigamente as pessoas apareciam - ela tinha muito conhecimento de pessoas de grande instrução - e ela falava francês. Era muito pela educação. Era uma senhora descendente de africanos, mas ela não gritava com filho-de-santo, entendeu? Não fazia essas atrocidades que muita gente... Como é autoridade, acha que pode pisar nos outros. E ela, não. Tinha boas maneiras de falar com as pessoas, todo o jeito dela era especial. E ela dizia que queria ver os filhos-de-santo dela e os netos servindo a Xangô com o anel no dedo. Ela não viu, mas - vê porque o ancestral é indivisível, onde ele estiver, vê e sabe de tudo - e creio eu que ela está vendo e adorando isso aí, as escolas no terreno que ela comprou. Uma das escolas tem o nome dela: Eugênia Ana dos Santos.
Ela comprou esta roça em São Gonçalo.
Lutadora porque, quando era mil-réis a moeda, ela queria comprar isso aqui e comprou. Pra Xangô. E ela queria comprar o peji (santuário) de Yemanjá, que ela também adorava muito. Ela foi ao cartório e queria botar no nome de Xangô. Mas não tinha como... Ainda mais naquele tempo. Iam dizer até que ela era louca. De Xangô não pode ser. Então, ela deu um tempo, criou a sociedade. Sociedade Cruz Santa do Ilê Axé Opô Afonjá. Quer dizer, tinha que ser "cruz santa" porque se não tivesse o nome da religião católica na frente, nada feito. Tem aí São Francisco, o outro São José, tal, tal, e ela pôs Cruz Santa. Ilê Axé Opô Afonjá é o nome em iorubá da casa. Casa de culto sustentada por Afonjá, que é um Xangô. Ela conseguiu fazer isso. Criou a sociedade, botou o terreno no nome da sociedade, agora a sociedade fica sendo mantenedora do Axé. Se amanhã o Axé acabar, a sociedade não fica. Um casado com o outro, um não pode viver sem o outro. É evidente que o pensamento dela deve ter sido instrução de alguém que conhecesse a área. Nós estamos descansadas. Nem a sociedade vai conseguir eliminar o Axé, nem o Axé a sociedade.
A senhora conseguiu o tombamento do terreiro?
Foi. A princípio, eu não queria muito o tombamento porque... Sabe aquele negócio de tombamento? Quando eu era garota, ouvia dizer: a Igreja de São Bento tombada, então chegou d. (Timóteo) Amoroso, ele era inovador, que é que ele fez? Ele foi, tirou os santos, mudou o altar, o patrimônio chegou lá e mandou botar tudo no lugar! (risos) Ele botou. Então, não gostaria. Gosto de um movimento de vez em quando. A coisa que fica inerte, estática, não evolui. Tem que mexer. Inclusive por causa da energia, você mexe aqui, tira a energia negativa.
É preciso viajar, se deslocar?
É preciso viajar, saber outras coisas, respirar outros ares, conversar com outras pessoas, em outros idiomas. É muito bom. Fiz uma pressãozinha pra que isso aqui não fosse tombado, mas, depois, na situação em que nós estamos, da falta de respeito, da especulação imobiliária... Chefes de Estado que mentem pra população, dizendo que estão adotando uma religião que é contra tudo, entendeu? Então, não pode ser. A gente fica com medo, né?
Em Salvador, a especulação imobiliária está passando por cima de tudo?
Horrível, horrível, horrível. A gente tem que ver porque o Estado... Antigamente, há muitos anos, a Igreja mandava no Estado. Agora, pelo contrário. Por quê? Essas religiões novas que estão aparecendo aí, todas atrás de dinheiro. Muito dinheiro rolando...
Na Bahia, as igrejas neopentecostais estão agressivas, atacando o Candomblé...
Tomou força, estão tomando muita força. A gente tem que se segurar, ciente de que eles não vão ter essa vitória extrema como querem, porque nós adoramos o sagrado, o orixá, e estamos entregue a eles, nossa vida. Evidente que o negativo não vai vencer o positivo. Deixem eles lá lutando... Um dia, cada um procura seu lugar e se acomoda direitinho.
Queria que a senhora esclarecesse, até para que os não-baianos entendam, a questão do sincretismo. Mãe Aninha foi revolucionária para conquistar a liberdade de culto, esteve até com Getúlio Vargas, e a senhora marcou a história com aquela carta de 1983 sobre o sincretismo. Afirmou o Candomblé como religião. De 83 pra cá, o que mudou?
Eu acho que meu pensamento evolui. Quando eu fiz o documento, eu falava que tinha certeza que não ia ver aquilo que eu estou vendo. Meus filhos e meus netos vão conseguir trabalhar. Eu estou vendo, graças aos orixás, que os mais novos... Sou uma senhora com 82 anos. Não sou criança. Fiz o orixá em 1938.
Com Mãe Senhora?
Quando mãe Aninha faleceu, tomou conta da casa aqui uma senhora, mãe Bada, que era amiga de mãe Aninha. Depois mãe Bada faleceu, veio mãe Senhora. Aninha, Bada e mãe Senhora, que ficou por 30 e alguns anos, demorou muito tempo como ialorixá. Fez um trabalho maravilhoso, organizou muita coisa também, aos moldes de uma senhora do século XIX e do princípio do século XX. Mãe Senhora faleceu e veio mãe Ondina, que tinha sido iaquequerê (mãe pequena, auxiliar da ialorixá) do tempo de mãe Aninha. Foi escolhida novinha, deu conta do recado dela, evoluiu, mas a vida forçou que ela viajasse. Na vida, todo mundo precisa evoluir, né? Ela foi para o Rio e, nesse vai e volta, foi quando Mãe Senhora faleceu e ela tomou conta do Axé. Fez uma administração boa. Quando ela faleceu, fiquei à frente aqui, levando também com o axé dos orixás, me segurando e estou dando conta do meu recado. Então, consegui esse tombamento e tenho me segurado bastante. Estou lutando há mais de dois anos pra conseguir murar isso aí, por causa da invasão. Na frente, já estamos murando também. E aí são pessoas particulares que vão nos ajudando...
Conta com o apoio do Estado pra alguma coisa?
Conto, sim, em algumas coisas eu conto com o apoio do Estado. Mas você vê que muitos deles, até, têm receio de dizer que estão ajudando.
Ainda existe isso?
Existe, rapaz... Gente aqui do Axé, que tem até cargo, dizer que a religião é a católica. Pessoa com cargo aqui dentro. "Minha religião é a católica". Sofre de pensamento, de raciocínio, não sei o que é.
E hoje, voltando, o sincretismo faz sentido?
Não faz mais sentido. Porque as pessoas já sabem por que estão aqui. É cansativo de falar, mas houve ocasião de precisar esconder orixás com santos, embaixo da mesa tinha os assentamentos. Pra enganar o senhor, cantava, evocava em sua língua natal, ele não entendia nada, pensava que era festejo pra santa.
Terra Magazine - Houve invasões da polícia no Opô Afonjá?
Mãe Stella - Felizmente, aqui não. Porque era muito longe. Mãe Aninha foi inteligente. Aqui era um subúrbio, quase. Ela sempre procurou ser correta, era charmosa, ia fazendo toda a autoridade, todo o mundo gostava dela.
Ela foi ao Palácio do Catete.
Foi! Na década de 30, por aí, ela foi ao Catete. Ela se dava com algumas pessoas e o Osvaldo Aranha tinha conhecimento com ela. Através de um ogã aqui da casa, foi até Getúlio e conversou com ele. Jorge Amado, nesse tempo, também era deputado - sempre tem que ter umas pessoas mais conhecidas - e conseguiu a liberação de cultos. Conseguiu isso, e ficamos. Mas, como sempre, até hoje - está melhor - o povo de Candomblé não briga com ninguém, né? Que nos ofenda, diga isso ou aquilo, nós não vamos nos mexer. Quando eu cheguei aqui...
Em 1976.
Quando eu fui fazer o Candomblé, tinha aqui a delegacia de Jogos e Costumes, como se fosse uma boate ou casa de sei lá, pra tomar (a licença). Mas sempre se achou aquilo um absurdo. Eu aí me dirigi a uma entidade que seria aqui responsável pelo Candomblé... Pra provar, tinha que me dirigir a uma entidade que não estava fazendo nada. Mas chegou o professor Roberto Santos (ex-governador da Bahia, 1975-79), que conseguiu essa liberação na realidade. A gente nunca mais precisou de alvará pro culto. Tanto que o povo de candomblé deu a ele um opaxorô (instrumento que simboliza Oxalá) de prata. Devemos essa liberação maior a ele. Nós vamos levando direitinho.
Hoje, a relação com a Igreja Católica é boa?
É, respeito mútuo. Ela nos respeita, nós também a respeitamos. Não há necessidade de se invadir a Igreja pra fazer culto lá. O povo-de-santo ia pra lá, não tinha informação, pensando que estava se afirmando. Fazia uma obrigação e ia ao bispo pra ter a bênção, pra aquilo ter valor. Isso é até bobagem. Uma mistura. Sincretismo é um ato que se usa para agradar a todos e não faz bem a ninguém. Ninguém se completa com o sincretismo. É apenas uma confusão mental. Estou esperando que essa turma que não tomou consciência real do que é isso, tome e separe. Porque devemos ter a nossa crença. Como é que você vai fazer um axexê (cerimônia realizada após o rito fúnebre) sem cantar, sacrificar... Será que não vale nada, só vale a Igreja? Não tem necessidade disso.
Algumas casas assinaram o documento de 1983, mas acabaram não o seguindo. Por quê?
Por isso que eu digo que é bom você ser alfabetizado, ser instruído, pra ler e conversar com pessoas de bom caráter. Que vão esclarecendo. O pessoal tem a mania, sabe que você está errado, mas pra não desagradar, diz: "Você faz muito bem...". Não é por aí. Se você gosta do outro, tem que chamar a atenção do que não tá legal, pra ele acordar e você ficar até orgulhoso dele. Então, esqueceram. Nós temos que aprender a discernir as coisas pra depois não assinarmos a nossa sentença. O doutor chega aqui, todo bonitinho, aqui Stella, assine isso aqui pra gente... Nada, eu tô assinando minha sentença. Amanhã vou ser presa, pagar pelo que assinei. Dizer amém ao que os outros falarem? Não...
Houve um pouco de reverência aos antecessores entre os que praticam o sincretismo ou simplesmente não entenderam que o tempo mudou?
Não entenderam que o tempo mudou e muita gente não tem condição de pensar bem, discernir tudo direitinho. Trocar miúdos pra saber por que estou aqui. Por que eu estou no Candomblé? Tem que saber. Aqui eu tenho obrigação de fazer isso e aquilo. Se você não pensa assim, aí vira folclore. Nossa religião é uma coisa lúdica, com cantos e danças, mas não é brincadeira. É uma religião alegre por si mesma. Faz homenagem cantando e dançando. Mas com cantos sagrados, danças sagradas.
E a imprensa mudou o tratamento dado ao Candomblé? Há menos preconceito?
Não, falar da imprensa... Você é repórter, né? (risos) Taí pra ganhar seu dinheiro. Quanto mais novidade, melhor. Vou comprar o jornal dele... É quente. O povo gosta disso. Então, um bom repórter tem que ser fiel. Se ele é fiel, está escrevendo o que ele viu.
É o pacto primário com a fonte.
Fidelidade, né? Não é escrever o que ele pensa, nem porque fulano pagou pra você escrever. Não é à toa que o patrono do repórter, da comunicação, é Exu. Exu quer fazer (risos). Eu acredito muito no repórter porque o repórter tem que ter bom caráter.
Mas a cobertura do Candomblé melhorou, tem bons jornalistas?
Jornalistas, sim. Porque o mundo mudou, até os antropólogos. No passado, escreviam aquela discriminação, como se fosse um animismo, uma invenção. Eles começaram por aí. Mas depois a humanidade foi evoluindo, as pessoas estudam. Quanto mais você estuda, mais você quer aprender, até que você chega a uma situação em que veja o que é mesmo a essência. Se você sabe o que é a essência, você sabe o que é a verdade.
Como a senhora vê o movimento de afirmação do negro? Acha importante a implantação de cotas nas universidades?
Nem tudo é. Porque às vezes até o negro - eu sou negra -, no afã de querer se aparecer, ele mesmo está discriminando. Precisa ter muito cuidado com isso. Eu falo para as pessoas terem cuidado. "Ah, branco não entra aqui!". Aí eu mesma tô me discriminando. Cotas pra mim... O negro tem obrigação, como todo o ser humano, de ser inteligente, de ir pros livros, fazer pesquisas, dar conta de seu recado direitinho. Estão sendo acessíveis com eles, como se fosse um favor: coitadinhos, deixem eles passar... Não é isso. Tem a obrigação de estudar. Se ele estuda, não tem quem discrimine. Porque se discriminar, tem a Justiça aí.
Mas se eu fiz minha prova boa, sei que tenho consciência, fiz um trabalho legal, por que ele me tirou? Vou ver quem está com a razão. Esse negócio de passar a mão na cabeça... Não há mais necessidade disso. Cada um de nós tem que ter a condição de escrever a sua própria história. Ah, eu vou ficar calada, ah, deixa o branco fazer... Não tem nada de branco nem preto. Outra coisa que eu desfaço nesse documento (de 1983) é a crença de que todo negro tem que ser de Candomblé. Não é. O sagrado não tem cor, não tem condição física, nem instrução nem nada disso. O ser humano é livre para acreditar no que quiser. Não tem necessidade de todo negro ser de Candomblé. Muitos já vieram aqui: "Mãe, estou aqui porque sou negro...". Não. Você pode ser negro e ser padre. Pode ser negro e ser ateu.
Há muitos e muitos negros evangélicos.
Pois é. Uma coisa não está acima da outra. Na realidade o negro tomou conhecimento do Candomblé por causa das suas raízes, a África. Mas na África há pessoas que não são negras. Agora, cabe à gente desmanchar isso, nem destratar os brancos, nem puxar o saco porque é branco. Todos são seres humanos, todos têm o direito de ser bem-tratados, todos têm o dever de tratar bem os outros. Cada religião tem a sua hierarquia. Cada religião tem sua liturgia, tem seus dogmas, de acordo com a tradição de cada país, de cada local. Essa criação do mundo se dá de uma maneira: o grego viu de uma maneira, o africano de outra, o americano de outra... Ninguém é dono da verdade. Dono da verdade é quem estiver certo pra si e fazer tudo pra não prejudicar o irmão. (pausa) Pronto?
Tá bom?
Tá.
Fonte: Terra Magazine
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